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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O segredo dos seus olhos


As máquinas de escrever são uma espécie de componente obrigatório nos cenários de filmes que contam histórias sobre o século XX, não podia ser diferente, já que as máquinas eram essenciais na vida das pessoas.

Mas geralmente elas estão lá apenas como um adorno visual que retrata uma época, sem qualquer relevância no enredo, a não ser, é claro, que seja para atender a um roteiro raso de filme B, em que o assassino utilize uma máquina para deixar bilhetes no corpo das suas vítimas, daí, basta encontrar a máquina para descobrir o criminoso.



No belíssimo filme argentino "O segredo dos seus olhos", uma Lexikon 80 aparece, não como um elemento chave para o desenvolvimento da trama, mas com uma função bastante importante.

Quando assisti às primeiras cenas, fiquei irritado com a forma desastrosa com que a bela Olivetti estava sendo tratada, só porque apresentava um defeito com a impressão da letra "a".

 Depois, entendi que essa ausência do tipo era essencial para que o personagem pudesse revelar seus sentimentos, em mais um detalhe brilhante da história.



Recomendo fortemente que todos assistam ao filme, que está disponível em vários lugares, como o Netflix e, imagino, nas locadoras.

Mas, para ilustrar, preparei uma pequena edição com os recortes da Lexikon 80. Está no YouTube.



Luciano Toriello - 28.12.2015
Escrito com uma Lexikon 80, idêntica à do filme, em perfeitas condições, como aquela também deve estar, porque as Lexikon 80 são eternas.




terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Caçador de tesouros


Um amigo passou a me apelidar de Indiana, numa referência direta ao personagem dos cinemas que vive suas aventuras em busca de objetos históricos. Um exagero, sem tamanho e sem merecimento, mas é verdade que em busca de uma máquina de escrever sou capaz de ir bem longe.

Até o encontro, alguns cuidados são necessários, como ter certeza que as fotos são reais, o vendedor exista nas redes sociais e o endereço seja válido.

Da mesma forma, entendo que o anunciante tenha necessidade de alguma segurança para fornecer suas informações, afinal, ninguém quer ficar exposto a um assalto ou qualquer outra barbaridade.

Mas nessas andanças sempre tive a sorte de encontrar ótimas pessoas. Tanto que chego a acreditar que se o mundo é dividido entre bons e maus, certamente os bons têm ou tiveram uma máquina de escrever. Os maus, nem sempre.

Melhor mesmo é quando uma máquina vem acompanhada da história de quem a possuiu. Daí a conversa estica, porque tenho um interesse especial por tudo que cerca o objeto, principalmente por quem o utilizou.

Por meio desses relatos, já conheci alguns advogados, médicos, contadores e até escritores com livros publicados. Todos eles tiveram suas máquinas como bens valiosos e as deixaram como parte da herança.

Na última vez, ouvi um filho de 65 anos dizer que eu estava levando, junto com a máquina, um pouco da alma do seu pai, porque tinha a lembrança viva dele escrevendo com ela.

Insisti que talvez fosse melhor manter a máquina guardada para algum neto ou neta, mas a resposta foi enfática:

- Não, de jeito nenhum! Ninguém mais se interessa por isso. Nem tenho espaço na minha casa. Pode levar que, com você, a máquina vai ser melhor aproveitada.

Quando consigo uma máquina assim, fico feliz por saber que foi bem cuidada e conservada por tantos anos, mas sei que tenho uma responsabilidade maior, porque trago junto com ela uma parte da memória que dificilmente será resgatada pela família.

Estou longe de ser o aventureiro de chapéu e chicote, mas tenho a consciência que máquinas de escrever podem ser tesouros, com valor bem maior que o preço pago por elas.

Luciano Toriello - 22.12.2015
Escrito com uma Remington 11 (Querida Ogra)


sábado, 19 de dezembro de 2015

A melhor de todos os tempos


Em 1988, tive a oportunidade de trabalhar na Folha da Manhã, empresa que publica o jornal Folha de S. Paulo e, na época, também era responsável pela Folha da Tarde e pelo saudoso Notícias Populares.

A redação da Folha era a mais moderna, com terminais eletrônicos que acendiam as telas de fósforo verde, em que os jornalistas produziam as matérias e encaminhavam, após a edição, direto para o setor de fotocomposição, onde eu trabalhava. Lá, os artistas do paste-up montavam a página como seria impressa, colando textos e fotos, munidos de régua, estilete e canetas de nanquim.

Mas o lugar que mais me atraía era a redação do extinto A Gazeta Esportiva, que tinha o pessoal contratado pela Fundação Cásper Líbero, mas utilizava a mesma estrutura gráfica do Grupo Folha, na Alameda Barão de Limeira.

Os jornalistas da GE eram craques do texto, capazes de reproduzir a emoção de uma partida de futebol com suas máquinas de escrever, ainda que estivessem assistindo ao jogo por uma pequena TV de tubo, com uma imagem ruim.

Normalmente, o jornal de esportes fechava cedo, por volta das 22h30, mas eventualmente era preciso esperar o resultado de alguma partida importante para que a cidade pudesse ler no dia seguinte.

Tudo ficava pronto, esperando apenas o último texto, com espaço reservado. Daí, eu cumpria a ordem de fazer sombra ao jornalista responsável pela matéria.

 Após o apito final, ele concluía as anotações, virava o tampo da mesa para fazer surgir a sua Lexikon 80, que ficava presa pelos pés, e metralhava o teclado, em uma velocidade impressionante para os meus olhos.

Depois do último ponto, arrancava o papel da máquina e me entregava, sem a necessidade de revisar o resultado.

- Pode levar.

Era a senha para eu começar a minha corrida alucinante, para que o texto fosse digitado, revelado e entregue para ser colado na página e seguir pelo elevador para a produção do fotolito. Em poucos minutos, estava na rotativa.

Favorita dos bons jornalistas, a Olivetti fabricada nos anos 1950 dava seus últimos suspiros, sem ter sido substituída pelos modelos mais novos, porque era a melhor.

Não demorou até que os técnicos de informática desembalassem os equipamentos de edição eletrônica, que apareceram de um dia para o outro. Em seguida, todo o pessoal da fotocomposição fez fila para sacar o FGTS.

Prefiro não imaginar o final trágico daquelas Lexikon 80, mas estou certo que os antigos profissionais da imprensa guardam uma saudade da melhor máquina de escrever de todos os tempos.




Luciano Toriello - 19/12/2015
Escrito com uma Olivetti Lexikon 80

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Matemática turca


Matemática turca

No empório do turquinho podia se encontrar de tudo: enlatados, queijos, biscoitos, macarrão, carne seca, arroz e feijão...

Tudo bem pesado, com a simpatia que o seu Valdemar dispensava a todos, principalmente para as crianças que grudavam o nariz na vitrine de doces, lotada de marias moles, suspiros coloridos, paçocas, pés de moleque e corações de abóbora e batata doce.

Em cima da vitrine, ficava um lindo baleiro de vidro, com dois andares, que giravam e encantavam com a mistura de cores e sabores.

O seu Valdemar não era turco e nem o empório tinha o nome de Turquinho, pelo menos não de forma oficial. A placa indicava apenas "Secos e Molhados", com letras apagadas pelo tempo.



O dono anterior tinha sido um turco baixinho, que vendeu o estabelecimento e, depois, fez fortuna com uma rede de supermercados. Nem cheguei a conhecê-lo, mas para a minha mãe, ele nunca tinha ido embora.

- Luciano, dá uma corrida até o turquinho e pede uma lata de leite condensado! Mas volte rápido senão a minha receita desanda!

Minha mãe estava sempre envolvida com receitas que precisavam de ingredientes urgentes.

- Luciano, corre até o turquinho e me traga uma caixa de ovos, corre até o turquinho e me traga queijo ralado, me traga farinha de trigo, me traga amendoim, me traga..., me traga...

E saía eu correndo para atender aos pedidos, enquanto minhas bolinhas de gude e minhas pipas em construção ficavam me esperando.

Quase sempre chegava em casa e ouvia outro pedido!

- Volta lá e pede coco ralado...

Quando chegava de volta:

- Só tinha dessa marca? Quanto você pagou? Que absurdo!

A correria não me incomodava, porque sabia que iriam sair delícias daquelas panelas, como balas de coco e bolos de mandioca. Invariavelmente, era premiado com a raspa do tacho.

Do outro lado, o seu Valdemar me recebia sempre com um sorriso e ainda ensinava muitas coisas, principalmente matemática, me forçando a calcular o troco de cabeça, sem a ajuda de lápis ou calculadora.




- Custou $2,25 e você me trouxe $3, então, quanto precisa levar de troco?

- Não precisa me dar troco, seu Valdemar, dessa vez minha mãe deixou eu pegar o resto em bala!

- Tudo isso? A bala custa $0,05, então, quantas balas você pode pegar?

- Sei lá, seu Valdemar, se me der uma mão cheia de balas de amendoim, eu já fico feliz!

- Nada disso! Só vou te entregar as balas se fizer as contas e me disser quantas pode levar!

Parei por um tempo para contar meus dedos, mais de uma vez para ter certeza do resultado e responder que tinha direito a 15 balas.

- Com o dedo não vale! Assim você demora muito! Quando aprender a contar direito eu te dou uma bala a mais.

Com a visão do lucro de uma bala, passei a ficar mais esperto. Respondia antes que ele me perguntasse.

- Tá aprendendo, né? Desse jeito, quando ficar maior, vai trabalhar comigo!

Hoje, quando vou à padaria, vejo a menina do caixa colocar as contas na calculadora, me obrigando a esperar por um resultado que eu já conheço.

Nem todo mundo poderia trabalhar com o seu Valdemar.


Luciano Toriello - 03/12/2015
Escrito com uma Erika modell 10