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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Caçador de tesouros


Um amigo passou a me apelidar de Indiana, numa referência direta ao personagem dos cinemas que vive suas aventuras em busca de objetos históricos. Um exagero, sem tamanho e sem merecimento, mas é verdade que em busca de uma máquina de escrever sou capaz de ir bem longe.

Até o encontro, alguns cuidados são necessários, como ter certeza que as fotos são reais, o vendedor exista nas redes sociais e o endereço seja válido.

Da mesma forma, entendo que o anunciante tenha necessidade de alguma segurança para fornecer suas informações, afinal, ninguém quer ficar exposto a um assalto ou qualquer outra barbaridade.

Mas nessas andanças sempre tive a sorte de encontrar ótimas pessoas. Tanto que chego a acreditar que se o mundo é dividido entre bons e maus, certamente os bons têm ou tiveram uma máquina de escrever. Os maus, nem sempre.

Melhor mesmo é quando uma máquina vem acompanhada da história de quem a possuiu. Daí a conversa estica, porque tenho um interesse especial por tudo que cerca o objeto, principalmente por quem o utilizou.

Por meio desses relatos, já conheci alguns advogados, médicos, contadores e até escritores com livros publicados. Todos eles tiveram suas máquinas como bens valiosos e as deixaram como parte da herança.

Na última vez, ouvi um filho de 65 anos dizer que eu estava levando, junto com a máquina, um pouco da alma do seu pai, porque tinha a lembrança viva dele escrevendo com ela.

Insisti que talvez fosse melhor manter a máquina guardada para algum neto ou neta, mas a resposta foi enfática:

- Não, de jeito nenhum! Ninguém mais se interessa por isso. Nem tenho espaço na minha casa. Pode levar que, com você, a máquina vai ser melhor aproveitada.

Quando consigo uma máquina assim, fico feliz por saber que foi bem cuidada e conservada por tantos anos, mas sei que tenho uma responsabilidade maior, porque trago junto com ela uma parte da memória que dificilmente será resgatada pela família.

Estou longe de ser o aventureiro de chapéu e chicote, mas tenho a consciência que máquinas de escrever podem ser tesouros, com valor bem maior que o preço pago por elas.

Luciano Toriello - 22.12.2015
Escrito com uma Remington 11 (Querida Ogra)


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Não dá para restaurar



As coisas têm história e narram sua trajetória de acordo com as características que acumulam com o tempo.
O código se apresenta em pequenos sinais, como uma mancha, um arranhão ou um vício de funcionamento. É possível entender de forma clara como eram as pessoas que utilizaram o objeto, até decifrar uma personalidade que nem mesmo o autor pode ter se dado conta que tinha.
Quando encontro uma máquina de escrever e dedico minhas horas na sua limpeza e manutenção, estabeleço um diálogo com esse personagem-objeto e até sou capaz de enxergar o exato instante que a marca passou a existir.
Quer um exemplo? Uma das minhas máquinas, uma Royal Quiet Deluxe, tem a lateral esquerda com a pintura estufada, pronta para descascar em uma limpeza mais profunda. Ao mesmo tempo, essa máquina tem o teclado leve, daqueles que não enroscam com velocidade rápida. É certo que pertenceu a um escritor, que repousava o braço esquerdo em sua lateral, enquanto consultava um livro a sua direita ou parava para pensar no melhor registro da sua imaginação. Depois da pausa, metralhava suas ideias num único fôlego.
Outras máquinas tiveram um uso profissional, em salas acarpetadas, escrevendo cartas e memorandos. Arranhões nos botões do teclado apontam para os dedos femininos, com unhas compridas e bem pintadas, roçando sobre a tecla enquanto o olhar busca por uma palavra perdida no rascunho. Difícil dizer o que se passava por essa cabeça naquele instante. Talvez o desejo por um sapato novo, os planos de casamentou ou a conta atrasada esperando por um saldo positivo.
Por isso, ao invés de arriscar uma restauração que finge devolver o estado de novo ao objeto, mas que cria, de fato, um palimpsesto em que as marcas são raspadas para um novo registro, que não apaga o passado, prefiro simplesmente deixar o mesmo visual, limpo apenas de sujeira, para que a coisa continue o seu caminho até o agora em que também eu serei traduzido por minhas pegadas.


Luciano Toriello - 24/08/2015
Escrito em uma Olivetti Lexikon 80